Por: Julio Zarnitz, Economista, Corecon/MS 1088.
Nestas últimas décadas, os municípios receberam mais atribuições – como educação e saúde. Mas isso não se traduziu em um aumento de verbas. Temos que organizar as atribuições de cada ente da federação e a forma de atuação conjunta, para o atendimento das necessidades e anseios de nossa população.
Ao assumir a presidência do Brasil, Jair Bolsonaro prometeu “partilhar o poder, de forma progressiva, responsável e consciente, de Brasília para o Brasil; do Poder Central para Estados e Municípios”. É um recado comum, em começos de mandato, anunciar novas práticas. No entanto, persiste desde os anos 1990 uma progressiva concentração de receita na União, em detrimento dos demais níveis de governo, que ficam reféns de transferências do Governo Federal, gerando a recorrente cobrança pela reformulação do pacto federativo. Neste contexto cresce a dúvida sobre que tipo de reforma pode assegurar ao federalismo brasileiro mais autonomia financeira e uma distribuição mais igualitária de competências.
O secretário estadual de Planejamento de Recife/PE, Alexandre Rebêlo, resume o drama em poucas palavras as atribuições do Poder Executivo versus capacidade de financiamento.
Na partida, nos anos 1980, a cada R$ 10 arrecadado, R$ 8 iam para um bolo dividido entre estados e municípios e R$ 2 ficavam com a União. Com passar do tempo, isso foi mudando, chegando na proporção de R$ 10 arrecadados, a União só divide R$ 3. Isso gerou uma enorme dependência da União. A ordem era: te dou atribuições, mas não dou dinheiro, ponderou (GADÊLHA, 2019).
A visão do presidente Bolsonaro sobre o pacto federativo constava já no plano de governo, contudo, sem muitos detalhes. Então agora nos perguntamos, isto irá mesmo acontecer?
Apenas em 2017 a União repassou para os Estados e Municípios do Sul apenas 23% da carga tributária, um prejuízo de 140 bilhões de reais em apenas um ano, e mais de 1 trilhão de reais na última década.

O Pacto Federativo brasileiro foi construído de cabeça para baixo. Enquanto na Europa nós tivemos primeiramente o surgimento das cidades-Estado, que com o passar do tempo criaram zonas de influência e, após conflitos diversos entre si, acabaram fundindo-se em países; enquanto nos Estados Unidos, como o nome já sugere, houve uma união, sob o manto de uma nação, de regiões autônomas que buscavam aumentar sua força; o Brasil, este gigante, nasceu sob a égide de um poder central. Inicialmente era a Coroa portuguesa, que para facilitar a administração de tão vasto território o dividiu em capitanias hereditárias, base dos atuais Estados. Ao longo dos 500 anos, elas se dividiram em 5.570 municípios brasileiros.
Em função deste histórico, em nosso país o poder político, e principalmente a carga tributária, ficaram centralizados na União.

Voltando um pouco no tempo, ainda sob o regime da Coroa Portuguesa, em 1789 aconteceu a Inconfidência Mineira, período que teve uma grande queda na produção de ouro, acentuando a pobreza da população. Mesmo com a diminuição da extração do ouro, o sistema e o valor da cobrança dos impostos (o quinto) devido à coroa se mantinha o mesmo. Quando o ouro entregue não perfazia 100 arrobas (cerca de 1500 kg) anuais, era decretada a derrama. Esta consistia em cobrar da população, pela força das armas, a quantidade que faltava.
Em 1835 nós no Sul tivemos a Revolução Farroupilha, em que o Rio Grande do Sul tentou se separar do Brasil em protesto ao fato de que 50% dos tributos gerados no Estado iam para o governo central.
Quase duzentos anos depois, este quadro se agravou: atualmente, por lei, a União concentra 65% da carga tributária, contra 20% dos estados e 15% dos municípios. Mas isto não é o que acontece na realidade. Como podemos ver no quadro do início do artigo, aos estados e municípios do Sul apenas 20% da carga tributária.

Apesar dessa concentração de recursos nas mãos da União, nas duas últimas décadas, após a Constituição de 1988, nós passamos a viver um processo intenso de descentralização da gestão das políticas públicas. Cada vez mais, o ente público que provê os serviços públicos para a população é o município.
Dois exemplos comprovam isso. O primeiro é na área da saúde: em 1986, os municípios possuíam 43 mil servidores neste campo e apenas as grandes capitais tinham hospitais e outros serviços de atendimento. No interior, os postos de saúde eram estaduais ou então pertenciam ao extinto INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). Mas, atualmente, todos os municípios assumiram a gestão da atenção básica de saúde e alguns prestam também serviços de média e alta complexidade. São mais de 200 mil agentes comunitários contratados pelos municípios e 27 mil equipes de saúde da família, com médicos, enfermeiras e auxiliares de enfermagem, que se somam a dentistas, fisioterapeutas, veterinários, etc., totalizando 832 mil servidores. Enquanto isso, no mesmo período, a União reduziu os seus funcionários nesta área de 250 mil para 108 mil.
O segundo exemplo diz respeito à educação. Em 1997, os municípios possuíam 40% das matrículas do ensino fundamental, única modalidade de ensino obrigatória pela nossa Constituição. Então veio o FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental) e posteriormente o FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), que estimula a inclusão de crianças nesta fase do processo educacional. Em 2017, os municípios já possuíam 70% das matrículas desta etapa, que podemos considerar universalizada, pois 94% das crianças entre 7 e 14 anos estão nas escolas. São 40 milhões de crianças. Ou seja, os municípios assumiram 15 milhões de novos alunos, tendo de construir cerca de 350 mil salas de aula e dotá-las de professores, servidores, segurança, merenda escolar etc.
Entretanto, a carga tributária continua nas mãos da União, que auxilia a financiar essas funções assumidas pelos municípios através de 145 programas. Estes transferem recursos para custear uma parte de cada atividade executada pelo município, de forma insuficiente.
A expectativa de estados e municípios, tratada nas discussões das duas emendas, é que a União aumente gradativamente os seus repasses e, em dez anos, a complementação suba dos atuais 10% e alcance entre 30% e 40%. O fundo cobre toda a educação básica, da creche ao ensino médio, é a principal fonte para o pagamento dos professores da rede pública em todo o país e ainda pode ser usado para a manutenção de escolas, aquisição de material didático e capacitação dos docentes, entre outras despesas. Em 2017, o Fundeb movimentou R$ 145,3 bilhões (dado do Tesouro Nacional).
Para exemplificar isso vamos citar apenas o Programa Saúde da Família (PSF), em que para sustentar uma equipe com médico, enfermeira e auxiliar, a União repassa cerca de R$ 5,4 mil por mês, enquanto o custo, para o município, da manutenção das condições de trabalho destes funcionários é de pelo menos quatro vezes esse valor. No mérito o programa é brilhante, mas no financiamento faz com que os municípios, que possuem um quarto da arrecadação da União, coloquem três vezes mais recursos.Assim, antes de providenciarmos as tão necessárias reformas política, tributária, trabalhista e previdenciária, temos que organizar as atribuições de cada ente da federação e a forma de atuação conjunta, para o atendimento das necessidades e anseios de nossa população, realizando o que apelidamos de Reforma Federativa, para botar o nosso Pacto Federativo em sua posição correta de valorização dos municípios.
REFERÊNCIAS
GADÊLHA, Ulysses. O apelo por autonomia no pacto federativo brasileiro. Folha de Pernambuco, 2019. Disponível em: https://www.folhape.com.br/politica/politica/blog-da-folha/2019/01/12/BLG,9153,7,509,POLITICA,2419-O-APELO-POR-AUTONOMIA-PACTO-FEDERATIVO-BRASILEIRO.aspx. Acesso em: 27 jan. 2019.
SENADO FEDERAL. Pacto federativo. Senado Federal, 2019. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/pacto-federativo. Acesso em: 27 jan. 2019.
COSTA, Gilberto. Estados e municípios pedem Fundeb permanente e mais recursos da União. Agência Brasil, 2019. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2018-09/estados-e-municipios-pedem-fundeb-permanente-e-mais-recursos-da-uniao. Acesso em: 27 jan. 2019.
GOYA, Henrique Molfi. O pacto federativo brasileiro e os impactos desse modelo na gestão dos entes federados. 2016. Monografia (Monografia apresentada ao curso de Ciências Econômicas, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Bacharel) – Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, São Paulo, 2016. Disponível em: http://dspace.insper.edu.br/xmlui/bitstream/handle/11224/1563/Henrique%20Molfi%20Goya_Trabalho.pdf?sequence=1. Acesso em: 27 jan. 2019.
HUGO, Victor. Brasil: formação centrífuga e a urgência de revisão do pacto federativo. Democracia Direta, 2016. Disponível em: https://partidodemocraciadiretadotcomdotbr.wordpress.com/2016/06/06/brasil-formacao-centrifuga-e-a-urgencia-de-revisao-do-pacto-federativo/. Acesso em: 27 jan. 2019.
FLEURY, Sônia; CARVALHO, Antônio Ivo. INSTITUTO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA MÉDICA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL (INAMPS). Fundação Getúlio Vargas, 2014. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/instituto-nacional-de-assistencia-medica-da-previdencia-social-inamps. Acesso em: 27 jan. 2019.
COSTA, Enrico. A crise financeira dos estados e o Pacto Federativo. Mercado Popular, 2017. Disponível em: http://mercadopopular.org/2017/05/como-estados-se-beneficiam-pela-uniao/. Acesso em: 27 jan. 2019.
ZARNITZ, Julio. Conseguiremos sobreviver se o Sul for independente? Movimento O Sul é o Meu País, 2017. Disponível em: https://www.sullivre.org/conseguiremos-sobreviver-se-o-sul-for-independente/. Acesso em: 27 jan. 2019.
1 Comment
Um ótimo artigo, parabéns para o autor.
Bolsonaro tem que primeiro fazer a reforma tributária, depois a previdenciária. Se todos somos iguais, então deveremos ter os mesmos direitos, inclusive a aposentadoria. Sullivre.orh
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