Por Alison Henrique Machado
Na região do vale que emana o alto, o médio e o baixo Iguaçu, principalmente o planalto curitibano, onde estão as nascentes, cujos céus cinzentos são predominantemente típicos — Curitiba é uma das cidades do planeta com menos dias de sol e, quando aparece, é acompanhado do frio — a principal fonte da vitamina D não é da luz do dia. É a sombra das araucárias que emana — em simbiose com uma folhosa, cujo aroma das folhas exala a cuia, e o mateador sorve o dito nutriente na seiva, a seiva da erva-mate — pois a Natureza é perfeita.
A erveira é sensível à exposição solar, e cresce nativa na sombra do pinheiro-do-paraná (Araucaria angustifolia). Aliás, araucárias e erva-mate comunicam entre si, formando um nicho majestoso que entende-se no longínquo sertão dos Campos Gerais, como nas bacias do Tibagi e Ivaí, nutrindo os viventes na proverbial erva-dos-jesuítas.
Por um tempo, a erva-mate foi botanicamente reconhecida pelo seu habitat natural frio: Ilex curitibensis — o termo ‘curi+tyba’ é uma expressão guarani e significa ‘abundância de pinheirais / pinhão’.
Os planaltos do Paraná Tradicional, cuja fronteira entendia-se ao Rio Grande, eram denominados de Curitiba: Campos de Curitiba, o primeiro planalto; e Campos Gerais de Curitiba, o segundo e terceiro planaltos — e éramos todos curitibanos, por excelência, por cultura, por civilização, por gentílico, por ecologia.
“Houve um tempo — um longo tempo — em que na região centro-sul do Paraná, compreendida pelo vale do médio Iguaçu e, em particular, na cidade de Curitiba, então ainda um proviciana capital onde se concentrava um florescente parque moageiro, o ar que nelas se respirava tinha um forte aroma de erva-mate.
Se é permitida a uma paisagem física e social ter um perfume característico, esse era o perfume que impregnava a atmosfera dessa área tradicional do chamado Paraná Velho.
Esse aroma tão peculiar, tão tradicional e agradável, vinha do interior planaltino, se espalhava por Curitiba, descia a Serra do Mar e se prolongava até os portos de Paranaguá e Antonina, de onde o mate, inicialmente em surrões de couro e depois em barricas de madeira, era exportado em larga escala para os países do Prata.” (Samuel Guimarães da Costa)*
Se a estética das araucárias remete à uma linguagem sentimental, e seu habitat frio identifica o Sul como tal, pode-se atribuir à erva-mate poesia aromática.
Mais que isto! O mate civilizou os viventes no cone sul. “A veneração do café e o perfumado fetichismo do chá nada são, nem se quer dão uma ideia da profunda significação do mate, na América do Sul, que não se pode descrever com palavras, nem cantar, nem dizer, nem pintar, nem esculpir em mármore.” (Robert AVÉ-LALLEMANT, 1858)**
O médico alemão, Robert Avé-Lallemant, em sua visita a Província do Paraná em 1858, denominou-a de “civilização do mate” — assim descreveu ele em sua obra Viagem pelo Paraná:
“Mate, mate e mais mate! Esse é a senha do planalto, a senha nas terras baixas, na floresta e no campo. Distritos inteiros, aliás, províncias inteiras, onde a gente desperta com o mate, madraceia o dia com o mate e com o mate adormece. As mulheres entram em trabalho de parto e passam o tempo de resguardo sorvendo o mate e o último olhar do moribundo cai certamente sobre o mate. É o mate a saudação da chegada, o símbolo da hospitalidade, o sinal da reconciliação. Tudo o que em nossa civilização se compreende com amor, amizade, estima e sacrifício, tudo o que é elevado e profundo e bom impulso da alma humana, do coração, tudo está entretecido e entrelaçado com o ato de preparar o mate, servi-lo e tomá-lo em comum.”
Havia cinco anos que a Comarca de Curitiba tinha se emancipado de São Paulo, tornando-se na Província do Paraná, após dois séculos de dominação paulista, e conseguimos graças ao ciclo econômico do mate, a erva libertária.
“(…) entre as razões argüidas para demonstrar a auto-suficiência do Paraná no decisivo momento histórico em que se pleiteava a emancipação política de São Paulo, o mate era o grande argumento, procurando-se com suas cifras de exportação impressionar o governo central. No fundo, eram os interesses do mate, buscando uma representação política que melhor os protegesse” (Samuel Guimarães da Costa)*
Segundo o Dr. Marcelo Soares, na obra sobre O Mate no Paraná**, em 1875 “o consumo de mate, feito na base do chimarrão, era altamente significativo”. Havia um consumo de 750 arrobas de erva-mate para uma população de 127 mil habitantes. Na conta dele, equivalendo a três cuias por pessoa ao dia.
Em “A função civilizadora das árvores”, o paranista Romário Martins (1944)*** escreveu que a árvore foi objeto de culto de todos os povos na antiguidade (e no presente), disse ele que “Os seus deuses foram Attis, na Frígia, cujo culto passou a Roma. (…) Os assírios adoravam a palmeira; os hebreus, o carvalho; os árabes, uma acácia; os guanhes (habitantes das Canárias) adoravam um dragoeiro multissecular…”. Eu acrescento o Brazil tropical, e o pau-brasil; o meridional, o pinheiro-do-paraná e a erva-mate.
(…) “os três planaltos do Paraná se sucedem para o oeste como degraus de um imenso anfiteatro”, isto é, um fundo de excepcional valor cênico para a ação construtiva do homem.
É evidente que essa particular configuração teve influência nas condições de clima e de ambiência ecológica, segundo princípios do ecossistema, para fazer do Paraná o habitat mais adequado ao surgimento da erva-mate, como planta que vegeta em estado silvestre. Ela faria do território paranaense, como parte que é da Bacia do Prata, uma das raras áreas brasileiras de ocorrência da erva-mate, uma das maiores reservas mundiais de ervais nativos.” (Samuel Guimarães da Costa)*
Quando nós, sulistas, e em particular, paranaenses, mateamos, seja no tradicional chimarrão, ou tererê, e até mesmo o tostado chá-mate, estamos venerando não somente a beleza cênica do bioma das araucárias, mas também a tradição, o Paraná Tradicional, a erva-mate libertária da Comarca de Curitiba, que desde o século XVI, quando éramos a Província espanhola-jesuítica, o mate e o pinhão estiveram presentes nas revoluções.
Preservar a tradição é dar um “tapa na cara” de Brazília!
‘’Na origem da fortuna das principais famílias do Paraná vamos encontrar a erva-mate. Ela fez viscondes e barões, criando a pequena aristocracia titulada da sociedade paranaense, a exemplo do que ocorreu com o café em São Paulo, a cana-de-açúcar no Nordeste e o cacau na Bahia. O visconde de Nácar e o barão do Cerro Azul devem seus brazões ao Mate” (Samuel Guimarães da Costa)*
Do ponto de vista social, segundo Hermógenes Lazier****, “… o ciclo do mate constitui a mais bela riqueza do Paraná (…) constitui uma indústria de retalho. Não se acumula nas mãos de poucos, mas se divide por todos. A bela e poderosa coluna que ela erigiu na economia paranaense era formada de milhares de pequenas parcelas.”
“[no Paraná] a erva-mate teve uma participação importante na fixação das colônias de neo-europeus, principalmente italianos, poloneses e ucranianos, oriundos da grande imigração estrangeira iniciada em fins do século passado [séc. XIX], assegurando a sobrevivência de muitas delas que de outro modo, dadas as reduzidas dimensões do mercado interno, teriam certamente fracassado. Nas regiões de extração do mate, o imigrante se fez ervateiro, afeiçoado ao uso diário do chimarrão, do churrasco e dos costumes campestres. Foi mais influenciado, do que influenciou.” (Samuel Guimarães da Costa, grifo meu)*
O ciclo econômico da erva-mate durou mais de cem anos no Paraná, e, em 1920, o então Presidente do Estado paranaense, Caetano Munhoz da Rocha, rasgou elogios ao dizer “… essa preciosa ilexinia tem sido o grande bem do Paraná. Em verdade a erva-mate constitui a coluna de ouro de nossa riqueza econômica, dela emanam as nossas principais fontes, nela assenta todo o engrandecimento e prosperidade do Paraná…” **
A ação construtiva no mate-amargo civilizou o arquetípico sulista, como descrito poeticamente na seguinte prosa tropeira:
— “Nas pousadas e nos galpões, à noite, enquanto o chimarrão rodava, iam ouvindo histórias contadas com aquele vagar e descanso dos que não tinham pressa — porque não adianta tê-lo — dos que sabiam ter paciência, sabendo, de antemão, o tempo a ser gasto em cada jornada percorrida. Assim, foram aprendendo ‘causos’, aprendendo-os para contá-los mais à frente. Dessa forma, faziam-se bons conversadores, sabendo ouvir e sabendo falar por sua vez. É este, ainda, passados anos, um dos traços característicos dos homens dos Campos Gerais” **
Se porventura algum mateador lendo este artigo não ter palavras para descrever o que faz o mate ser uma verdadeira veneração, certamente se identificará com as palavras do paranista Romário Martins (1926)***:
Nos meios sociais onde o mate é um vício, os costumes são moderados, as paixões não se desfreiam, o bom humor é constante, a atividade não depaupera e qualquer alimento é suficiente. Quem se habitua ao uso do mate cada vez o toma em maior porção, porque essa bebida lhe dá uma sensação de bem-estar, de vigor e de lucidez (…).
Somente o mate (…) não tem contra-indicações. É tolerado, mesmo em excesso, por todos organismos (…).
Onde se estabelecesse o uso coletivo do mate, aí se modificaria, para melhor, a sociedade.
Paranaenses, é chegado a hora de enaltecimento a tradição, pois ela é a nossa a alma. Não deixemos nos ‘abrazileirar’ pelos livros do MEC! O Sul começa aqui!
Com toda razão, nosso leitor indaga e responde: — Que Paraná é esse, o tradicional? Bem, este é o Paraná da erva-mate, do chimarrão, da geada, do poncho, do vanerão, do xote, da vanera, da gaita, do pinhão, do quentão de vinho e gemada, da araucária, do cedrinho, da bracatinga, e, as vezes, da neve. É o Paraná do leite-quente, do polaco, do italiano, do alemão [do ucraniano]. (Arthur Tramujas Neto, grifo meu)*****
REFERÊNCIAS
* COSTA, Samuel Guimarães da, 1919 – A erva-mate / Samuel Guimarães da Costa. Curitiba : Coleção Farol do Saber, 1995. (p. 17; p.
** ZATTI, Carlos. O Paraná e o Paranismo / Carlos Zatti. – Curitiba : Clube de Autores, 2014 (p. 99 e 100; p. 167; p. 83; p. 118)
*** MARTINS, Romário, 1874-1948. Livro das árvores do Paraná / Romário Martins. – 3ª Ed. – Curitiba : Imprensa Oficial, 2005. (p. 186 e 187)
**** LAZIER, Hermógenes. Paraná: Terra de Todas as Gentes e de Muita História. 1° Ed. Francisco Beltrão, 2003.
***** ZATTI, Carlos. O Paraná de Bombachas / Carlos Zatti – Curitiba: IHGPR, 2013
1 Comment
Isso aí, Alison! Somos todos sulistas, velhos bebedores de mate, bebida desconhecida na margem direita do Paranapanema.
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